A preocupação de Luís com a esposa aumentava a cada segundo.
Violentas foram as primeiras contrações do parto. E para a remoção da esposa à maternidade, o médico do seu caso viria com uma ambulância. Isso foi combinado naquele momento por telefone.
Uma experiente parteira, amiga do casal, foi chamada. Fez uma sondagem e prognosticou parto difícil, em razão da irregular posição da criança.
A demora da chegada do médico precipitava no ânimo de Luís um nervosismo incontrolável.
Ali, no portão da casa, um negro surgiu há pouco e insistia em falar com Luís. Já numa primeira vez foi repelido pelo criado por ordem do próprio Luís. Mas ele não tirava o pé dali.
- Senhor! – voltou o criado – O negro não para de insistir. Diz que tem um recado importante de um médico.
- Que médico ? O nosso médico já está chegando. Diacho de trânsito neste dia 24 de dezembro. Todo ano é assim. O trânsito vira um inferno justo numa época de dia santo...tomara que amanhã nossos festejos sejam alegres.
Passado o episódio, não demorou muito e eis o criado de volta, amarrado ainda à insistência do negro. Aproximou-se hesitante, com receioda reação explosiva do patrão. Mas criou coragem e diz:
- Pois é, senhor, o bom negro...
- Bom ?Olhe,odeio negros! E que história é esta sei lá de que médico? Toque este sujeito daqui. ( Mais tarde Luís se desculpou com o empregado pelo desrespeito cometido contra a raça negra ).
O criado se foi. Não demorou e ele volta:
- Se...senhor ,vai me perdoar outra vez...
- O quê ? O negro ainda? Espere um pouco.
E lá vai Luís rangendo os dentes. Atravessoua sala ampla, saiu ao jardim em direção ao portão e ao teimoso e indiscreto visitante.
Surpresa! Luís dá com uma figura de negro forte, alto, ampla testa, olhar carregado de paz e simpatia capaz de desarmar qualquer inimigo. A exaltação de Luís serenou. Com muito respeito perguntou:
- O que o senhor deseja ? O negro tirou do bolso um papel dobrado, passou às mãos de Luís, dizendo tratar-se de recado de um médico.
- Que médico ?
- É melhor ler. O senhor entenderá.
- Sim, mas de onde é esse médico ? Onde mora? Ele me conhece?
- Conhece sim. E sabe do problema de sua esposa. É medico ambulante e fica sabendo das coisas.
- Como se chama ele ? Novos lamentos no quarto interromperam o diálogo. Luís saiu correndo. Pediu tranquilidade à esposa, bem amparada pela parteira e retornou.
Pela interrupção, como sempre acontece, o diálogo acabou tomando outro rumo.
Luís, então, desdobrou o papel e leu: “Tenha fé”.
- Só isto ? Tanto barulho por nada ? E por que não veio esse médico pessoalmente ?
- Como falei, senhor, é médico ambulante. Vai a todos os lugares. Tem muitos auxiliares e secretários para ficar ligado aos pacientes. Eu sou um deles.
De repente, vagidos sonoros.
- Nasceu !gritou Luís – nasceu ! E entrou em disparada.
Ali, no quarto, a parteira carregava uma linda menina. Traduzia a alegria com lágrimas e não escondia uma grande admiração:
- Senhor, foi um verdadeiro milagre !Tava tudo complicado e eu pensei que a garotinha não ia viver. Também tive medo pela mãe. Já sem nenhuma esperança, derepente o médico chegou. Foi na hora. Com a maior calma do mundo fez o parto e só disse isso:
“Pronto!” Pediu desculpas pela pressa e foi embora.
Nesse momento chegavam finalmente a ambulância e o médico da família. Felizmente sem a necessidade deles. Voltou Luís ao portão, na esperança de um esclarecimento. A confusão era atordoante. Luís não entendia nada.
Abriu novamente o papel, releu a estranha mensagem: “Tenha fé”. Voltou-se ao criado e quis saber de alguma outra palavra do negro, por exemplo, que mais disse antes de partir.
- Bem, senhor. Ele foi embora com dois outros companheiros que o aguardavam o tempo todo na esquina. Quando o senhor disparou daqui, apenas disse que precisava sair para completar outra missão igual a esta. Despediu-se com um sorriso e apresentou-se com o nome de Gaspar... Disse que os outros eram o
Baltazar e um de nome complicado...
Silêncio.
Forte comoção sacudiu Luís. Com voz trêmula e engasgada exclamou sem que o criado entendesse:
- Santo Deus ! Era ELE! Era ELE !